sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Eu e meu psicólogo II


O dia amanheceu, eu pulei da cama e percebi que estava chovendo, mais um feriado chegando e São Pedro parecendo que tá de sacanagem com todo mundo. Segunda feira, um calorão daqueles que não da pra sair de casa, agora chegando um feriado longo (mais um!), chove. Beleza, a vida segue. Eu acordo, pulo da cama, visto meu disfarce meio mulher gato meio mendiga e caio direto no batmóvel que me leva duas vezes por semana ao meu lugar preferido nessas últimas semanas: um consultório simples mas aconchegante que me sinto no paraíso e no inferno ao mesmo tempo, e onde encontro uma pessoa muito importante na minha vida, que aqui eu chamo de Dr. Mauricio.

Pois bem, a rotina de sempre ele estende a mão, eu aperto, ele me pergunta como eu estou me sentindo hoje e eu digo que estou bem, mas está escrito na minha cara que não tô tão bem assim. 

Antes mesmo de começar eu falo: 

- Dr. Mauricio, eu queria te falar uma coisa, porque tô me sentindo mau e presa com tudo isso. 

E ele diz: 

- Sim Dora, pode falar sobre o que você quiser. 

E eu digo: 

- Doutor, eu tenho que te contar que menti quando o senhor me perguntou como foi a minha infância e adolescência. 

Ele fez uma cara meio de assustado, mas menos do que eu imaginava. Era como se ele quisesse me dizer: e daí minha filha? Ou ainda: eu já sabia. Mas não disse nada, acho que estava esperando eu continuar. E eu continuei: 

- Doutor, eu não tomava conta de bebê fora da favela, mas era o que eu dizia para a minha mãe mesmo. Meu irmão também não vendia bala no trem não. 

Eu travei, não conseguia falar mais nada, ai ele perguntou: 

- Mas sim, e vocês faziam o quê? 

- Ele, meu irmão, estava era entrando no tráfico, no mesmo tráfico que ia tirar a vida dele depois. 

Disse isso e não falei mais nada, fingi que não entendi que ele também perguntou de mim. Mas ele estava danado pra perguntar hoje, e não deixou passar batido, não. 

- Dora, você quer falar sobre o seu irmão? 

E eu quieta, como quem não quer nada. Ele desistiu de falar sobre o meu irmão e começou a mirar em mim. Foi pior ainda. Ele mandou assim: 

- Dora, e você, o que você fazia se não era babá? 

Eu gelei, mas não podia mentir de novo. Fiquei uns dez segundos parada, mas pra mim parecia uma eternidade. Ele ficou me olhando durante esse tempo e várias coisas passando pela minha cabeça. Pensei, pensei, pensei e respondi: 

- Eu trabalhava com umas meninas que trabalhavam com os garotos da boca. 

E ele: 

- Como assim Dora? Me explica melhor.

- Bem doutor, eu trabalhava para as meninas que faziam uns agrados nos meninos da boca, nos falcões, como a gente chamava. 

E soltei um sorrisinho sem graça, porque sabia que ele ia continuar perguntando, então falei antes que ele perguntasse: 

- Bem doutor, eu pegava e guardava o dinheiro que elas recebiam porque faziam coisa com ele, coisa com a boca, sabe? Ai! Bo... boque... boqueti doutor, era isso que elas faziam, boqueti nos meninos. 

Ele ficou me olhando um tempo, acho que queria entender como seria isso tudo e perguntou: 

- Mas você só pegava o dinheiro Dora? Você participava também? 

E eu: 

- Não doutor, eu nunca participei nem fiz nada com os meninos na minha vida, só ajudava as garotas mesmo. A que eu mais fiquei de tempo foi a Eva, que era uma grande amiga minha. Coitada, ela se envolveu com droga, só droga pesada mesmo, e precisava de dinheiro, muitas vezes fazia o trabalho por um pó, ou maconha, mas aí, eu não me metia, eles davam a droga direto para ela mesmo. 

Essa consulta foi longa e tenho certeza que ainda vai durar um tempo com o Dr. Mauricio. Depois de falar isso, eu não quis mais dizer nada, só queria ir embora de novo. Levantei, vesti minha roupa de mulher gato com toque de mendiga, entrei no batmóvel e voltei para a casa da X. 

Por enquanto acabou, mas daqui a pouco tempo vou ter que voltar nesse assunto de novo, que é o meu mundo real, né? Mesmo que seja passado. 
Tenho certeza que isso vai me ajudar de alguma forma a continuar vivendo.

2 comentários:

  1. Aproveite o momento oportuno e desabafe. Pela sua história de vida, posso crer que o diálogo agora será ferramenta fundamental para a construção de vida nova...

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